Ane Caroline Gaspardi1; Francisco Guilherme Fujita Neto2
Resumo
INTRODUÇÃO: De acordo com Art. 6º da Portaria de Consolidação Nº 5 de 22 de Novembro de 2017 (Origem: PRT MS/GM 158/2016), “a transfusão de sangue e seus componentes deve ser utilizada criteriosamente na medicina, uma vez que toda transfusão traz em si um risco ao receptor, seja imediato ou tardio, devendo ser indicada de forma criteriosa”. A partir disso, o objetivo deste trabalho foi verificar o perfil geral de requisições transfusionais, bem como os hemocomponentes prescritos, avaliando-se principalmente os pacientes atendidos com concentrado de hemácias em caráter emergencial.
MÉTODOS: Foi realizada uma busca no sistema informatizado do FUJISAN por Requisições Transfusionais (RT) registradas no período de 01 de julho de 2020 a 31 de julho de 2021. Os resultados foram tabulados em planilha do Excel para análise.
RESULTADOS: Foram registradas 21.768 requisições de transfusão no período estabelecido que resultaram na prescrição de 58.218 hemocomponentes para 13.823 pacientes. Destas, somente 300 foram realizadas em caráter emergencial.
CONCLUSÃO: Conclui-se que apesar das requisições de emergência serem a minoria, ainda permanece a preocupação com pacientes aloimunizados, além da subnotificação de reações transfusionais, sugerindo a necessidade de melhorias no sistema de comunicação com os hospitais para ressaltar a importância da hemovigilância.
INTRODUÇÃO
De acordo com Art. 6º da Portaria de Consolidação Nº 5 de 22 de Novembro de 2017 (Origem: PRT MS/GM 158/2016), “a transfusão de sangue e seus componentes deve ser utilizada criteriosamente na medicina, uma vez que toda transfusão traz em si um risco ao receptor, seja imediato ou tardio, devendo ser indicada de forma criteriosa”. Segundo a legislação vigente, existem quatro modalidades de transfusão, sendo elas: programada, de rotina, de urgência e de emergência1. Quando o retardo da transfusão puder acarretar risco para a vida do paciente (emergência), o protocolo de transfusão especial é ativado e concentrados de hemácias do grupo “O” Negativo podem ser utilizados sem a conclusão dos testes pré-transfusionais, desde que clinicamente justificável, devendo o médico prescritor se responsabilizar por tal ato2.
Embora seja permitido, os testes pré-transfusionais são fundamentais para garantir a segurança transfusional, principalmente de pacientes aloimunizados contra antígenos eritrocitários, além do sistema ABO e do antígeno RhD, como é o caso dos sistemas Rh, Kell, Kidd, Duffy, MNS, Diego, dentre outros. Nas situações de emergência, em que os testes não são realizados previamente à transfusão, e por conseguinte, possíveis aloanticorpos clinicamente significantes não são identificados em tempo hábil, o receptor corre o risco de apresentar reações hemolíticas graves, potencialmente fatais3. A partir disso, o objetivo deste trabalho foi verificar o perfil geral de requisições transfusionais, bem como os hemocomponentes prescritos, avaliando-se principalmente os pacientes atendidos com concentrado de hemácias em caráter emergencial.
MÉTODOS
Foi realizada uma busca no sistema informatizado do FUJISAN - Centro de Hemoterapia, Hematologia e Terapia Celular do Ceará LTDA., por Requisições Transfusionais (RT) registradas no período de 01 de julho de 2020 a 31 de julho de 2021. As informações extraídas foram tabuladas em planilha do Excel, consistindo na modalidade transfusional (1 - programada, 2 - rotina, 3 - urgência, 4 - emergência e 5 - reserva), tipo e quantidade de hemocomponentes prescritos (CH - concentrado de hemácias, CP - concentrado de plaquetas, CPAF - concentrado de plaquetas por aférese, PFC - plasma fresco congelado, CRIO - crioprecipitado e PC - plasma convalescente). A incidência de reações transfusionais e histórico de aloimunização contra antígenos eritrocitários dos pacientes atendidos nesse período também foram avaliados.
Dentre as modalidades de transfusão, avaliamos o perfil dos pacientes atendidos com CH em caráter emergencial, a partir das seguintes variáveis: gênero, idade, diagnóstico e protocolo clínico. Os dados foram coletados somente após a anuência do diretor médico.
RESULTADOS
Foram registradas 21.768 requisições de transfusão no período estabelecido que resultaram na prescrição de 58.218 hemocomponentes para 13.823 pacientes. Dentre as requisições, 1.476 (6,8%) foram programadas, 8.285 (38,1%) de rotina, 4.147 (19,1%) de urgência, 300 (1,4%) de emergência e 7.560 (34,6%) reservas. A quantidade de hemocomponentes prescritos em cada modalidade está disposta na tabela 1.
Apesar do alto número de requisições e hemocomponentes prescritos, foram registradas somente 100 reações transfusionais, o que nos alerta para possíveis subnotificações. A mais prevalente foi a reação alérgica com 52% dos casos, sendo 34% leve, 14% moderada e 4% grave. As demais reações estão dispostas na tabela 2.
Em relação à incidência de aloimunização, cerca de 5% dos nossos 13.823 pacientes possuem anticorpos irregulares contra os principais sistemas de grupos sanguíneos, sendo 70% dos casos direcionados a antígenos dos sistemas Rh e Kell. Dentre os pacientes aloimunizados, 447 apresentam anticorpos clinicamente significantes em níveis indetectáveis nos testes pré-transfusionais.
Embora a taxa de transfusões realizadas na modalidade de emergência corresponda a somente 1,4% das requisições avaliadas, verificamos o perfil dos pacientes vinculados a 182 requisições que prescreveram 368 concentrados de hemácias. Foram analisados 94 pacientes do sexo masculino, 82 pacientes do sexo feminino, e 06 recém-nascidos. A mediana de idade foi de 54 anos (0 a 98 anos), sem diferença estatística entre os gêneros. Os principais diagnósticos e protocolos clínicos estão dispostos respectivamente nas tabelas 3 e 4.
DISCUSSÃO
Os números de requisições transfusionais por modalidade estão concordantes com cada categoria analisada. Observamos que embora as reservas compreendam 34,6% das requisições, operacionalmente ainda é alta a taxa desse tipo de solicitação com pacientes já no centro cirúrgico, submetidos a procedimentos previamente agendados. Essa conduta pode resultar na liberação de hemocomponentes em caráter emergencial, expondo o paciente a riscos potencialmente controlados se a reserva fosse realizada em tempo hábil como recomenda a legislação vigente.
A disponibilidade de um suprimento de sangue seguro é um componente primordial na medicina transfusional. Estoques de hemácias do grupo “O” Negativo e plasma do grupo “AB” são valiosos em um banco de sangue4. No entanto, segundo o boletim emitido pela AABB, há três critérios para o uso apropriado dessas hemácias, sendo eles: obrigatório, para pacientes sensibilizados com anti-D e mulheres em idade fértil; recomendado, para candidatos a transplante de medula óssea, portadores de anemia aplástica ou câncer; e liberação aceitável de “O” Positivo, no caso de pacientes acima de 45 anos. Além disso, é fundamental transfundir somente as unidades necessárias, principalmente por ser um recurso escasso2.
A transfusão é uma terapia com benefícios amplamente difundidos, mas com riscos intrínsecos que levam ao aumento da morbidade e mortalidade5. A aplicação de ferramentas para detecção da necessidade de transfusões no Departamento de Emergência ou até mesmo para ativação de protocolos de transfusão maciça pode auxiliar o uso racional do sangue6. Segundo Alimohammadi, 20177 a avaliação de parâmetros como hipotensão, presença de líquido livre no ultrassom, instabilidade clínica do anel pélvico, idade, admissão e mecanismo do trauma, permitiu que somente 6% dos 793 pacientes fossem transfundidos na emergência.
Embora a taxa de sensibilização seja relativamente baixa, ainda existem riscos potencialmente fatais, principalmente nas transfusões realizadas em emergência, sem a conclusão dos testes pré-transfusionais. A aloimunização causa vários problemas, desde o atraso na obtenção de sangue compatível até reações transfusionais hemolíticas8 . A correta identificação desses anticorpos é fundamental para propiciar um suporte transfusional satisfatório e requer equipes de imuno-hematologia altamente especializadas, principalmente quando se trata de anticorpos raros9.
De acordo com as diretrizes preconizadas pelo PBM - Patient Blood Management, otimizar o sangue do paciente no pré-operatório através do aumento de níveis de hemoglobina/hematócrito, e propor alternativas como a recuperação de sangue e hemodiluição no intra-operatório, além da minimização dos distúrbios hemostáticos, melhoram os resultados clínicos, evitando exposição desnecessária a componentes do sangue. Estratégias desse tipo devem ser discutidas e planejadas com antecedência8,10-11
Como citado anteriormente, cerca de 3,2% dos nossos pacientes apresentaram aloanticorpos clinicamente significantes indetectáveis nos testes pré-transfusionais. De acordo com Chonat, 201912, 30% das reações transfusionais hemolíticas podem acontecer sob essas condições. Um ponto relevante observado nos nossos resultados foi o pequeno número de reações transfusionais notificadas, que denota a ocorrência de subnotificações e sugere a necessidade de melhorias no sistema de comunicação com os hospitais para ressaltar a importância da hemovigilância.
Outra característica da nossa população foi a idade dos pacientes. Embora a mediana tenha sido de 54 anos, 34% dos pacientes atendidos na modalidade de emergência, possuíam acima de 65 anos e a anemia foi o achado mais comum entre as requisições. Segundo Loftus, 201813, a anemia é comum e mórbida entre os idosos, fazendo com que apresentem níveis mais baixos de hemoglobina em relação aos pacientes mais jovens, apesar de receberem mais transfusões. Estes dados podem refletir o impacto das deficiências nutricionais, múltiplos medicamentos e mielodisplasia nesta população. Como respondem menos à transfusão, a administração exógena de ferro e eritropoietina pode ter valor terapêutico nesse grupo de pacientes.
CONCLUSÃO
Embora as requisições transfusionais realizadas na modalidade de emergência caracterizem a minoria dos casos, ainda permanece a preocupação com pacientes aloimunizados e com o manejo de concentrado de hemácias do grupo “O” Negativo, para manutenção do estoque adequado. Além disso, o alto número de requisições e hemocomponentes prescritos, em relação ao registro de somente 100 reações transfusionais, nos alerta para possíveis subnotificações, sugerindo melhorias no sistema de comunicação com os hospitais para ressaltar a importância da hemovigilância.
REFERÊNCIAS
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12. Chonat S, Arthur CM, Zerra PE, Maier CL, Jajosky RP, Yee MEM, et al. Challenges in preventing and treating hemolytic complications associated with red blood cell transfusion. Transfus Clin Biol [Internet]. 2019;26(2):130–4. Available from: https://doi.org/10.1016/j.tracli.2019.03.002
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