Luiz Ernani Meira Júnior1; Marco Túlio Caldeira Jorge Fialho2; Maria Fernanda Barbosa Silva3; Augusto Veloso Lages4; Cecília Rebello Faria5
Resumo
FUNDAMENTO: As doenças cardiovasculares são responsáveis por um elevado número de óbitos no Brasil. Os desfibriladores externos automáticos (DEA) são dispositivos com uma capacidade comprovada de reverter grande parte desses eventos agudos vividos em ambiente extra hospitalar. O conhecimento sobre o suporte básico de vida e sua correta implementação são fundamentais no desfecho e prognóstico dessas ocorrências.
OBJETIVOS: Esse estudo teve como objetivo analisar o conhecimento e capacidade de identificação do DEA pela população, bem como caracterizar a amostra quanto a sexo idade e formação acadêmica.
METODOLOGIA: Trata-se de um estudo analítico e transversal. Os dados foram coletados através de questionário validado, aplicado em aeroporto na cidade de Montes Claros por entrevistadores treinados.
RESULTADOS: Participaram do estudo 384 pessoas, sendo que a maioria da população entrevistada não conseguiu identificar o DEA (62%), porém foi capaz de descrever a sua função. Apenas 19,5% dos entrevistados realizaram treinamentos de primeiros socorros nos últimos 5 anos e,uma parcela menos ainda (7,3%), realizou treinamentos específicos com o DEA.
CONCLUSÃO: Variáveis como sexo masculino e idade igual ou inferior a 40 anos foram mais associadas a correta identificação do DEA. Em decorrência do, ainda, escasso conhecimento sobre o DEA, depreende-se a quantidade de informações acessíveis à população geral é insatisfatória. Desse modo, estratégias educacionais e informativas devem elaboradas e devidamente disseminadas ao público.
INTRODUÇÃO
As doenças cardiovasculares, representam a principal causa de morte no Brasil1. Na maioria das vezes, a parada cardiorrespiratória (PCR) é o evento final de tais doenças e ocorre em ambiente extra-hospitalar. Para um desfecho favorável no atendimento à PCR, manobras de ressuscitação, incluindo a desfibrilação precoce, são cruciais2. A desfibrilação é um procedimento no qual se aplica um impulso de energia através do tórax. O mecanismo de desfibrilação é baseado na despolarização total do músculo cardíaco, com o objetivo de retomar o ritmo cardíaco sinusal3.
A literatura registra que PCRs ocorridas fora de ambientes hospitalares destacam-se pelo predomínio de ritmos desfibriláveis. Nesses casos, a utilização precoce do desfibrilador externo automático (DEA) tem forte impacto nas chances de sobrevida dos indivíduos acometidos4,5. O sucesso desse procedimento depende do tempo, sendo que, após o primeiro minuto, caso não haja a desfibrilação, o índice de sobrevida cai de 7% a 10% a cada minuto6.
O suporte básico de vida (SBV), instrumento utilizado para capacitar a população frente a uma emergência, define a sequência primária necessária à reversão do quadro de PCR, conhecida como cadeia de sobrevivência. Já o suporte avançado de vida visa dar continuidade ao atendimento básico, porém, ainda que utilize medidas mais complexas e adequadas, seu sucesso dependedas ações de suporte básico realizadas de maneira oportuna e correta7. Vários autores destacam a relevância da assistência oportuna e realizada por pessoas leigas com o uso de DEA sobre os resultados do atendimento e prognóstico posterior4,5.
A capacitação da população e iniciativas de alocação de equipamentos de DEA em áreas de grande fluxo de pessoas são medidas bem difundidas internacionalmente como potenciais recursos para otimizar a atenção precoce à PCR8,9. Todavia, também existe a necessidade de realização de pesquisas que endossem a melhor implementação de programas de capacitação e de instalação do DEA. Particularmente no Brasil, o número de estudos sobre o tema ainda é escasso.
O presente estudo objetivou avaliar a capacidade de reconhecimento dos DEAs disponíveis em locais públicos e o conhecimento sobre sua aplicação, em caso de paradas cardíacas presenciadas,em uma cidade no estado de Minas Gerais.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo do tipo transversal e analítico. A pesquisa foi realizada no aeroporto de Montes Claros, principal polo urbano regional do norte de Minas Gerais. Segundo dados da Infraero,olocal conta com um fluxo de aproximadamente 400 mil passageiros ao ano somando embarques e desembarques, sendo este número utilizado para determinar a amostra do presente estudo. No local, foram considerados elegíveis para o estudo pessoas com idade igual ou superior a 18 anos, de ambos os sexos. A coleta de dados ocorreu no período de junho a outubro de 2016, em dias e horários diversificados e foi conduzida por entrevistadores especialmente treinados. Foram excluídas pessoas residentes em outros países.
O cálculo amostral foi realizado considerando uma prevalência de 50% do evento estudado, um nível de confiança de 95% e uma margem de erro de 5%. A alocação dos indivíduos para entrevistas se deu de forma aleatória, sendo entrevistados os indivíduos que se encontravam próximos ao DEA, para que os mesmos pudessem ter clara visão do instrumento em questão.
Para coleta de dados utilizou-se um instrumento baseado em estudo prévio4, após tradução, adaptação cultural e linguística e tradução reversa. As questões abordavam o conhecimento a respeito da desfibrilação de forma variada, incluindo desde a capacidade de identificar uma parada cardíaca, reconhecer um DEA e consciência em relação à disponibilidade do mesmo, como também a habilidade em manejar o equipamento.
Seguindo o modelo do instrumento já validado, a capacidade de reconhecimento do DEA foi avaliada pela pergunta “Você sabe o que é esse dispositivo?”, com o entrevistador apontando para o equipamento. As variáveis independentes foram: sexo, idade, formação na área da saúde, treinamento prévio em primeiros socorros e treinamento nos últimos 5 anos.
Os dados foram analisados por meio do Software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 24. A associação entre variáveis foi avaliada por meio do teste qui-quadrado. As variáveis que se mostraram associadas à incapacidade de reconhecimento do DEA até o nível de 20% (p<0,20) foram avaliadas em conjunto por meio da regressão de Poisson, com variância robusta, assumindo-se para o modelo final o nível de significância de 5% (p<0,05).
Todos os preceitos éticos foram respeitados na condução deste estudo. O projeto de pesquisa foi apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição dos pesquisadores (Parecer 1.561.757/2016). Todos os participantes, após terem sido esclarecidos em relação aos objetivos e procedimentos do estudo, concordaram com a pesquisa e assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
RESULTADOS
Participaram do estudo 384 indivíduos. Houve ligeiro predomínio de pessoas do sexo masculino (54,9%) e com idade entre 18 e 40 anos (60,2%). Entre os entrevistados, 59 (15,4%) tinham formação na área da saúde.
A Tabela 1 apresenta o consolidado das principais respostas sobre o DEA. O percentual de pessoas que reconheceram o DEA foi de 38,0% (IC95%=33,1-41,3). Praticamente metade dos entrevistados não soube responder sobre o motivo do equipamento naquele local (49,0%). Aproximadamente um quarto dos respondentes (25,3%) tinham ciência da existência da disponibilidade do DEA em locais públicos.
Quanto à realização prévia de treinamentos de primeiros socorros, 105 (27,3%) respondentes informaram ter realizado; 75 (19,5%) informaram ter realizado treinamento nos últimos 5 anos e 28 (7,3%) informaram treinamento com utilização do DEA (Tabela 1).
A tabela 2 apresenta os resultados das análises de associação entre características dos entrevistados e a habilidade de reconhecimento do DEA, com Razões de Prevalência brutas e ajustadas (após análise de regressão de Poisson). As variáveis que se mostraram associadas foram: sexo masculino, idade igual ou inferior a 40 anos, formação na área da saúde e participação em cursos de SBV há menos de cinco anos.
DISCUSSÃO
O presente trabalho revelou que uma elevada proporção da população entrevistada não reconhece o DEA e que existem ainda muitos equívocos em relação à disponibilidade ou acesso e utilização do dispositivo. Com a aplicação do mesmo instrumento, um estudo realizado nos Estados Unidos revelou que a maioria da população entrevistada sabia identificar um DEA e mais de dois terços relatavam de forma correta sua função10. Na Holanda, outro estudo apresentou resultados mais próximos ao do presente estudo, apontando que, respectivamente, 47% e 64% da amostra identificaram o DEA e explicaram corretamente sua função5. Um estudo conduzido em uma cidade do Reino Unido registrou que a maior parte dos entrevistados tinha realizado treinamento em Suporte Básico de Vida e sabia o que era um DEA, entretanto, apenas 26,1% sabia como usá-lo, pouco mais de 5% sabia onde localizá-lo em um espaço público e menos de 3% relatou que efetivamente utilizaria o dispositivo11.
Não foram identificados estudos similares no Brasil, embora a pesquisa realizada no Sul do país tenha concluído que poucos locais estão realmente adequados para realizar de forma correta o atendimento à parada cardiorrespiratória, salientando que faltam pessoas habilitadas e que são necessários maiores na área12. Os dados são particularmente relevantes considerando que não parecem existir dúvidas sobre os efeitos benéficos da utilização precoce do DEA por pessoas leigas4,5,13. No Japão, um estudo de base nacional demonstrou uma associação entre a correta utilização e disseminação desses dispositivos não somente com a diminuição de mortalidade, mas também com um melhor prognóstico neurológico dos pacientes8. Em outros países a capacitação em atendimento à PCR com uso do DEA tem alcançado até escolares14,15.
No presente estudo as variáveis que se mostraram associadas ao reconhecimento do DEA, após análise múltipla, foram o sexo masculino, a idade (igual ou inferior a 40 anos), área de formação em saúde e o fato de ter participado de treinamento de Suporte Básico de Vida (SBV) há menos de cinco anos. A identificação desses fatores aponta para a necessidade de ampliar a capacitação da população em geral para a atenção mais oportuna em casos de assistência à PCR. Outros autores já apontaram a necessidade de capacitação em massa, bem como de aumentar a conscientização sobre os DEAs como uma ferramenta de uso público, tal como já existe a percepção sobre os extintores de incêndio10. É relevante destacar que já existem estudos que avaliam o reconhecimento do símbolo de identificação do DEA em locais públicos, o que representa um nível mais elevado de envolvimento da população leiga com a proposta de atenção precoce à PCR16.
O fato de ter participado há menos de cinco anos de treinamento em SBV manter-se como variável associada ao reconhecimento do DEA no modelo final, destaca a necessidade de que os cursos para a população leiga sejam realizados de forma frequente. A elevada proporção de pessoas que apresentaram respostas inadequadas ao questionário também é um alerta para que sejam providenciadas oportunidades de capacitação. É bem regulamentado o direito do cidadão em usar os DEAs em locais públicos, porém um pequeno percentual das pessoas entrevistadas sabiam que qualquer cidadão está autorizado a utilizar este dispositivo em locais públicos. Esse achado é corroborado por outros estudos, mas não devem desestimular a disponibilização de equipamentos, conforme asseguram Eisenberg e Rea em reflexão editorial17. Os autores destacam que os resultados observados em relação aos pacientes assistidos devem ser vistos como estímulos para a capacitação contínua e maior disponibilidade de equipamentos.
De fato, os programas de educação em saúde para a reanimação e atendimento à PCR são muito escassos no Brasil. É preciso que muitas capacitações sejam realizadas até que a população reconheça mais facilmente o DEA e sinta-se confiante para iniciar as manobras de ressuscitação e aplicação dos recursos disponíveis. Alguns autores destacam que é desejável que os DEAs sejam, em pouco tempo, reconhecidos de forma tão natural como os extintores de incêndio10,17. Deve-se destacar ainda os elevados custos com pacientes que passam por eventos cardiovasculares agudos, sendo considerada positiva a relaçãocusto-efetividade da implementação e disseminação do acesso público ao DEA18.
CONCLUSÃO
Registrou-se uma elevada proporção de pessoas que desconhecem o DEA e que apresentam também importantes lacunas de conhecimento em relação à atenção precoce e oportuna à vítima de PCR. As variáveis que se mostraram associadas ao reconhecimento do DEA foram: sexo masculino, idade igual ou inferior a 40 anos, formação na área da saúde e participação em cursos de SBV há menos de cinco anos. É necessário que mais cursos sejam ofertados à população leiga sobre o assunto, sob risco da alocação dos DEAs em ambientes públicos se transformarem em peças decorativas e subutilizadas.
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