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ARTIGO DE REVISÃO

Covid-19 e prognóstico de pacientes submetidos a cirurgia de urgência e emergência

Luana Darc de Menezes Braga; Ricardo Sammuel Moura Lima; Antônio Matos de Souza Filho; Wendy Gomes Carneiro; Francisco Julimar Correia de-Menezes

DOI: https://doi.org/10.5935/2764-1449.20220011

Resumo

Com a pandemia de COVID-19, foram adotadas medidas que impactaram diretamente nos serviços de saúde, especialmente em relação aos procedimentos cirúrgicos, com a suspensão de cirurgias eletivas e o estabelecimento de fluxos específicos para procedimentos de emergência. Embora tenha havido uma redução no número total de casos atendidos em emergências cirúrgicas, observa-se na prática uma maior gravidade entre parcela importante destes. O presente estudo teve como objetivo um levantamento da literatura científica acerca do ato operatório em pacientes com COVID-19 atendidos por emergências e urgências cirúrgicas. Trata-se de um estudo descritivo, seguindo o padrão narrativo de revisão de literatura. Diversos estudos disponíveis na literatura relataram um aumento da mortalidade em pacientes com diagnóstico laboratorial positivo para COVID-19, bem como de complicações graves, especialmente pulmonares. As evidências sugerem que, em pacientes positivos para COVID-19, procedimentos cirúrgicos não essenciais devem ser adiados até um período de pelo menos 8 semanas após a infecção. Uma proporção considerável de pacientes é assintomática no momento do procedimento e diagnosticada apenas no pós-operatório. Concluímos que a infecção pelo COVID-19 ocasiona impacto importante na morbidade e mortalidade de pacientes submetidos a cirurgias de emergência, embora estudos mais robustos sejam necessários para reconhecer os fatores associados.

INTRODUÇÃO

A partir de Dezembro de 2019, emergiu na província de Wuhan, na China, uma doença primariamente respiratória, altamente contagiosa e, à época, de etiologia ainda desconhecida. Em Março de 2020, a Organização Mundial de Saúde definiu a emergência do COVID-19, doença respiratória aguda causada pelo vírus SARS-CoV-2, como uma pandemia1. Embora a maioria dos pacientes infectados apresentasse casos leves ou até mesmo assintomáticos, uma proporção considerável desenvolvia sintomas graves, caracterizando uma Sindrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) com complicações importantes2.

A maioria dos países impôs medidas severas de isolamento social para conter o avanço da pandemia, o que impactou diretamente nos serviços de saúde, nos quais uma das primeiras medidas adotadas foi a suspensão de procedimentos cirúrgicos eletivos3. Apesar disso, muitas situações de emergência demandam a realização de cirurgias não adiáveis, com impacto direto na sobrevida desses pacientes, o que exigiu a elaboração de medidas específicas para conter a disseminação do vírus e as complicações a ele relacionadas nesses grupos de pacientes4.

Além das discussões acerca do contágio da equipe cirúrgica e de outros pacientes, especialmente pelo número considerável de casos assintomáticos, a realização de procedimentos cirúrgicos durante a pandemia de COVID-19 também despertou uma preocupação sobre os riscos perioperatório e as complicações cirúrgicas. Estudos demonstraram uma maior mortalidade e morbidade entre indivíduos infectados, tanto em procedimentos eletivos quanto de urgência e emergência4,5. Além disso, outros trabalhos sugeriram que um período de pelo menos 8 semanas desde a confirmação da infecção deveria ser esperado para a realização de grandes cirurgias eletivas com uma maior segurança6.

Diversas são as complicações comaplicações cirúrgicas cuja infecção pelo SARS-CoV-2 pode precipitar ou ocasionar uma piora de prognóstico. Em especial, a ocorrência de Trombose Venosa Profunda (TVP) e Tromboembolismo Pulmonar (TEP) é uma grande preocupação nesses pacientes, uma vez que as evidências mostram que o COVID-19, por si só, causa um estado inflamatório de hipercoagulabilidade7. De fato, alguns estudos demonstraram um aumento da incidência de TVP/TEP como complicações cirúrgica em pacientes infectados8, além de outros casos, como Lesão Renal Aguda, Sepse, Pneumonia, entre outras intercorrências6.

Poucos estudos brasileiros estudaram a relação entre a infecção pelo SARS-CoV-2 e a morbimortalidade por procedimentos cirúrgicos de emergência e trauma. Alguns trabalhos internacionais realizaram essa comparação, em sua maioria abordando populações heterogêneas, mas com alguns resultados consistentes e concordantes, evidenciando a importância de mais estudos relacionados ao tema.

Haja vista essa heterogeneidade das populações, e a infecção por SARS-Cov2 apresentar resposta inflamatória variável, conforme seus subtipos, assim como os casos relacionados a procedimentos cirúrgicos e infecção por SARS-Cov-2 carecerem de vasta literatura científica, passamos a buscar as informações no contexto de procedimento operatório e COVID-19.

Portanto, nosso objetivo foi um levantamento da literatura científica disponível e atual para averiguarmos o que há disponível no contexto de ato operatório e pacientes com COVID-19.

 

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo do tipo descritivo, considerado uma revisão narrativa da literatura. As bases de dados utilizadas para a busca de artigos foram o PubMed/MEDLINE, recurso gratuito desenvolvido e mantido pela Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos, a Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e o Brasil Scientific Eletronic Library Online (SciELO). A pesquisa foi mediado pelos DEscritores em Ciências da Saúde (DeSC), na língua portuguesa, “sintomas”, “covid-19”, “perioperatório” e “preoperatorio”, e na língua inglesa, “covid-19”, “after”, “trauma”, “surgery” e “complications”. Foram selecionados artigos originais publicados de março de 2020 a janeiro de 2022. Foi utilizado o operador booleano “and, contendo os descritores “sintomas”, “covid-19” e “perioperatório”; “covid-19”, “after”, “trauma” e “surgery”; “perioperatório” ou “preoperatorio” e “covid-19” e “covid-19”, “surgery” e “complications” em todas as buscas realizadas.

Como critério de inclusão, foram selecionados artigos originais completos, gratuitos, que tratavam de estudo de caso ou revisões sistemáticas do novo coronavírus (SARS-CoV-2) em pacientes submetidos a cirurgias de urgência e emergência. Os critérios de exclusão utilizados foram artigos sobre outras formas de coronavírus, que não o SARS-CoV-2, e cirurgias eletivas.

 

COVID-19 E TRAUMA

Com a emergência da pandemia de COVID-19, os Centros de Trauma, muitos já funcionando próximos ao seu limite de capacidade, tiveram que se adaptar à situação epidemiológica global9. Enquanto grande parte das sociedades cirúrgicas indicou o adiamento de cirurgias eletivas, recomendações especiais foram direcionadas para manter o atendimento às vítimas de trauma, incluindo estratégias para planejamento hospitalar, proteção da equipe e manejo de recursos escassos10,11.

Com as medidas de isolamento social, observou-se uma mudança do perfil epidemiológico das lesões traumáticas. Segundo o Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH-SUS), no Brasil, entre Março e Dezembro de 2020, foram registradas 959.215 internações por causas externas, uma redução de aproximadamente 7,5% comparado ao mesmo período do ano anterior12. Estudos americanos, porém, demonstraram que, a despeito de uma redução inicial do número de pacientes vítimas de lesões traumáticas, houve um aumento da proporção de ferimentos penetrantes, seja por armas brancas ou por armas de fogo, possivelmente associados à violência doméstica e a lesões autoinfligidas13.

Um estudo retrospectivo tailandês comparando o período pandêmico com o período pré-pandêmico em um serviço de Cirurgia de Cuidados Críticos (Acute Care Surgery) demonstrou que, embora tenha ocorrido um aumento significativo do tempo de espera para procedimentos cirúrgicos, chegando a uma média de 240 minutos para lesões traumáticas, não foi encontrado aumento geral da mortalidade comparado ao mesmo período do ano anterior à pandemia. O estudo, porém, apresenta limitações por tratar-se de uma metodologia retrospectiva e por ter incluído tanto emergências traumáticas quanto não traumáticas, o que pode ter influenciado o resultado encontrado14.

Um estudo retrospectivo americano, pareando 53 pacientes vítimas de trauma com teste positivo para COVID-19 com 106 pacientes com teste negativo atendidos em Centros de Trauma nível I e II, foi capaz de demonstrar um aumento na mortalidade de pacientes infectados, bem como um aumento nas taxas de pneumonia e nos tempos de internação hospitalar e em UTI. Apesar disso, as taxas de outras complicações foram semelhantes13.

De maneira consistente com esses resultados, uma coorte retrospectiva americana, comparando pacientes positivos e negativos para COVID-19 admitidos em Centros de Trauma, também demonstrou achados semelhantes. Como desfecho primário, pacientes com testagem positiva para COVID-19 tiveram uma maior mortalidade, com um aumento de mais de 6 vezes nas chances de óbito, quando comparados àqueles com testagem negativa. Além disso, esses pacientes tiveram um aumento de 2 vezes nas chances de complicações em geral e de 5 vezes para complicações pulmonares. Também houve um aumento do tempo de internação e uma redução dos dias livres de UT9. Esses achados são consistentes com outros estudos abordando emergências cirúrgicas, não necessariamente traumáticas, em pacientes infectados pelo COVID-194,5.

O mesmo estudo9 encontrou, também, aumento significativo na incidência de Trombose Venosa Profunda/Tromboembolismo Pulmonar (TVP/TEP) e de insuficiência renal (IR) em pacientes positivos para COVID-19 em comparação com os controles. O impacto da infecção pelo vírus foi ainda mais evidente ao se considerar mecanismos de menor energia, os quais, em outros cenários, não sustentariam uma mortalidade tão significativa, como as quedas. Embora tenha empregado uma metodologia estatística robusta, o estudo possui algumas limitações, como a testagem não universal e o modelo retrospectivo.

Embora exista uma escassez na literatura de trabalhos comparando os desfechos de pacientes infectados pelo SARS-CoV-2 no contexto da cirurgia do trauma, os estudos existentes são consistentes ao demonstrar um aumento da mortalidade, de tempo de internação e de complicações, especialmente pulmonares. Estudos mais robustos, prospectivos, multicêntricos e com um maior número de pacientes arrolados são necessários para um melhor entendimento do efeito da infecção pelo vírus na morbimortalidade de vítimas de trauma. Além disso, os resultados destoantes com relação a alguns grupos de complicações são reflexo da heterogeneidade das populações estudadas. Especialmente, no Brasil, não foram encontrados estudos com esse tipo de abordagem.

Há que se mencionar, também, que a situação de escassez de EPIs e de profissionais, bem como de superlotação dos equipamentos de saúde, influenciou diretamente na abordagem das vítimas de trauma, com uma menor disponibilidade de leitos de UTI e de equipes especializadas. Um estudo brasileiro observou que os cirurgiões de trauma atuaram, durante a pandemia, em condições inadequadas e com falta de insumos básicos e de equipamentos de proteção individual15, aumentando os riscos de contaminação de profissionais e de outros pacientes.

 

PERÍODO PÓS-DIAGNOSTICO E PRINCIPAIS COMPLICAÇÕES RELACIONADAS

Um estudo de coorte multicêntrico realizado em 17 hospitais da Espanha e da Andorra entre março e maio de 2020 analisou os dados de 75 pacientes infectados por COVID-19 submetidos a cirurgia vascular, tendo como desfecho primário a mortalidade em 30 dias. Nesse estudo, a maioria das cirurgias foram de urgência (56%), seguida de emergência (44%). Cerca de 70,7% dos pacientes demonstraram complicações pós-operatórias, sendo as complicações pós-operatórias associadas mais frequentes foram insuficiência respiratória (36,0%), insuficiência renal aguda (22,7%) e SDRA (22,7%). Dezessete pacientes necessitaram de amputação de membros inferiores (4,0% amputação menor e 17,3% amputação maior). A taxa de mortalidade em 30 dias por todas as causas foi de 37,3%, apresentando uma sobrevida ruim.16

Foi realizada uma revisão retrospectiva de todos os pacientes COVID-1939 que foram operados entre 17 de fevereiro de 2020 e 26 de abril de 2020 em um grande hospital da cidade de Nova York. Quase todos os casos foram realizados por indicações de emergência ou urgência. A cirurgia geral e a ortopedia/cirurgia da mão foram responsáveis pelo tratamento das maiores porcentagens desses pacientes (n = 8, 20,5%), seguidas pela neurocirurgia, cirurgia vascular e cirurgia cardiotorácica/cardiologia intervencionista. No pós-operatório, 7 pacientes (17,9%) necessitaram de cuidados em nível de UTI com tempo médio de permanência de 7,7 dias. Ocorreram 4 óbitos (10,3%) nesta população de pacientes, todos ocorridos em pacientes com classificação ASA 3 ou 4. No geral, as taxas de admissão na UTI e mortalidade são semelhantes às taxas relatadas na literatura para pacientes não cirúrgicos com COVID-19. Na conclusão imediata do procedimento, houve necessidade de suporte ventilatório em 2 indivíduos e presença de hemopneumotórax em outro, enquanto em 7 (17,9%) pacientes foram encontradas necessidades de ir para a UTI relacionadas à COVID que não estavam presentes no pré-operatório, com tempo médio de permanência na UTI no pós-operatório de 7,7 dias. Complicações graves do COVID-19 se desenvolveram em 10 pacientes (25,6%). Choque com necessidade de suporte farmacológico da pressão arterial e lesão renal aguda foi o mais comum, ocorrendo em 6 indivíduos (15,4%). SDRA e infecção secundária também foram observadas em 5 pacientes. No entanto, como não houve a presença de um grupo controle de pacientes nas mesmas situações que precisaram passar por cirurgias eletivas, não há como encontrar uma conclusão satisfatória, sendo necessária a existência de estudos mais detalhados a cerca desse assunto.17

Um estudo de coorte realizado na Itália5 de fevereiro a abril de 2020 analisou pacientes submetidos à cirurgia - 53,65% foram submetidos a procedimentos ortopédicos, 17,1% a procedimentos vasculares, 14,6% neurológicos,12,2% geral, e 2,4% a cirurgias torácicas - que tiveram resultados de teste positivos para COVID-19 antes ou dentro de 1 semana após a cirurgia.

Neste estudo5, 41 pacientes cirúrgicos com COVID-19 e 82 pacientes de controle bem pareados sem COVID-19 foram comparados e diferenças significativas foram documentadas em relação às taxas de mortalidade precoce e complicações. Dentre elas, pneumonia e complicações trombóticas foram significativamente associadas ao COVID-19 e diferentes modelos identificaram o COVID-19 como a primeira variável associada a complicações cirúrgicas.

Dos 123 pacientes das coortes combinadas, a mortalidade em 30 dias foi significativamente maior para aqueles com COVID-19 (8 pacientes vs 2 pacientes no grupo controle) em comparação com pacientes de controle sem COVID-19 (razão de chances [OR], 9,5; IC 95%, 1,77-96,53). As complicações também foram significativamente maiores (OR, 4,98; IC 95%, 1,81-16,07), sendo as complicações pulmonares as mais comuns (OR, 35,62; IC 95%, 9,34-205,55), além das complicações trombóticas, que também foram significativamente associadas ao COVID-19 (OR, 13,2; IC 95%, 1,48-∞). Dos pacientes que apresentaram complicações pulmonares antes da cirurgia, foram considerados apenas aqueles com piora da pneumonia após a cirurgia, não sendo considerados aqueles cujas complicações pulmonares permaneceram inalteradas ou melhoraram. As complicações hemorrágicas, representadas principalmente pela necessidade de transfusão de sangue, foram o segundo evento adverso pós-operatório mais frequente, mas não houve diferença significativa em relação ao grupo controle (OR, 0,90; IC 95%, 0,38-2,09). Quatro complicações trombóticas foram registradas no grupo COVID-19; estes incluíram 1 trombose periférica no POD 4 e 3 tromboses arteriais no POD 1 após tromboembolectomia para isquemia aguda de membro inferior. As complicações cardíacas foram relativamente raras e associadas a complicações pulmonares graves. As complicações neurológicas também foram raras e transitórias (por exemplo, delírio) se os pacientes neurocirúrgicos fossem excluídos; nesta última subpopulação, a piora neurológica foi causada por ressangramento pós-operatório. Complicações locais (por exemplo, infecção do sítio cirúrgico e deiscência) foram relativamente raras e não diferiram do grupo controle. Os pacientes com COVID-19 foram aproximadamente 13 vezes mais propensos a ter complicações do que os controles, sendo a idade foi um fator significativo para complicações. Esses dados, de acordo com o estudo5 sugerem que, sempre que possível, a cirurgia deve ser adiada em pacientes com COVID-19.

Um estudo feito na cidade de Nova York de março a abril de 2020 avaliou a morbimortalidade perioperatória de pacientes com COVID-19 submetidos a cirurgias de urgência e emergência. Entre 468 indivíduos, 36 confirmaram COVID-19, sendo que quase metade dos casos de COVID-19 não foram identificados até após a intervenção cirúrgica. Os pacientes com COVID-19 submetidos a procedimentos de urgência e emergência apresentaram risco aumentado de complicações graves. A razão de risco de morte para pacientes positivos para COVID-19 em comparação com pacientes negativos para COVID-19 foi de 55,00 para aqueles que foram submetidos a. A proporção de complicações graves foi de 57,1% em pacientes positivos para COVID-19 em comparação com 14,3% na coorte negativa para COVID-19, enquanto a taxa de mortalidade foi de 17,1% versus 5,7%, respectivamente. A COVID-19 representa um risco substancial para pacientes submetidos a procedimentos cirúrgicos de urgência e emergência, estando associada a um risco significativamente aumentado de morbidade e mortalidade perioperatórias graves.4

 

FATORES ASSOCIADOS À COVID-19 MAIS RELACIONADOS COM MORBIMORTALIDADE

Um estudo realizado em 2020 na cidade de Nova York analisou objetivamente o resultado de pacientes com teste para COVID-19 positivo submetidos a procedimento cirúrgico. O número total de pacientes cirúrgicos COVID-19 pré ou pós-operatório foi de 39. Vinte pacientes (51,3%) tinham evidência documentada de pelo menos um sintoma de COVID-19 no período pré-operatório, sendo tosse e febre objetiva foram as mais citadas (n = 10, 25,6%) seguidas de falta de ar em 5 indivíduos (12,8%). Os sintomas começaram em média 14 dias (intervalo 1-22) antes da cirurgia. No pós-operatório, sete pacientes precisaram de cuidados na UTI com tempo médio de permanência de 7,7 dias. Além disso, houve quatro óbitos, todos entre pacientes com classificação ASA 3 ou 4. Dentre os quatro casos de óbitos, três pacientes apresentaram no pré-operatório pneumonia no raio-X. Em síntese, o estudo concluiu que o número de admissões na UTI e mortalidade são parecidas com os números citados na literatura para pacientes não cirúrgicos com COVID-19.17

Um estudo retrospectivo chinês analisou o desenvolvimento do SARS-CoV-2 em oito pacientes submetidos à artroplastia articular de 19 de janeiro a 24 de setembro de 2020. Desses pacientes, um apresentou febre; um apresentou tosse; um apresentou fadiga; nenhum apresentou dor de garganta; nenhum apresentou dispneia; nenhum apresentou dor no peito; nenhum apresentou congestão nasal; nenhum apresentou dor de cabeça; um apresentou tontura; nenhum apresentou diarréria; nenhum apresentou dor abdominal; nenhum apresentou vômito; todos apresentaram atividade limitada. Não houve óbitos. Em síntese, o estudo não apresentou nenhuma correlação específica entre sintomas e taxa de morbimortalidade.18

Outro estudo de coorte com 41 pacientes cirúrgicos com COVID e 82 pacientes controle pareados sem COVID. Esse estudo concluiu que, sempre que possível, o procedimento cirúrgico deve ser adiado em pacientes com COVID-19, tendo em vista que a taxa de mortalidade e de complicações cirúrgicas foram maiores em pacientes com COVID-19 quando comparada com pacientes sem COVID-19. Dos 41 pacientes com COVID, 6 apresentavam oxigenação pobre na sua admissão, enquanto apenas 1 do grupo controle se encontrava na mesma condição.5

Ademais, em trabalho realizado em dois hospitais da cidade de Nova York em 2020, examinou-se o desenvolvimento da COVID-19 em pacientes submetidos a cirurgias de urgência e emergência. Dos 36 pacientes positivos para COVID, 17 se apresentaram sintomáticos e 19 assintomáticos. Entretanto, o estudo não diferencia o desenvolvimento da doença entre pacientes sintomáticos e assintomáticos, tornando, assim, difícil a realização de uma conclusão.4

 

COMPLICAÇÕES EM CIRURGIAS DE EMERGÊNCIA NO TRATO GASTROINTESTINAL E HEPATOBILIARES NO CONTEXTO DO COVID-19

Desde o início do aumento do número de casos de COVID-19 e da possibilidade de colapso do sistema público de saúde, sabe-se da necessidade de conservar recursos críticos19, como leitos de enfermaria e de UTI, salas de cirurgia, respiradores, capacidade de transfusão e EPIs, elementos fundamentais para um adequado funcionamento hospitalar, de modo que este possa fornecer segurança aos pacientes e aos funcionários.

Outro fator levado em consideração no que diz respeito à manutenção da realização de cirurgias de emergência para afecções do trato gastrointestinal é o risco de disseminação do vírus, que pode ocorrer mesmo na sala de cirurgia19, onde, além das gotículas respiratórias e do contato próximo com o doente e suas secreções, surge outro meio de transmissão, por conta da presença do vírus no pneumoperitônio. Dessa forma, o aerossol liberado no centro cirúrgico pode contaminar tanto a equipe quanto o meio externo.

Um estudo demonstrou que o número de cirurgias de emergência diminuiu 59,1% durante o período de pandemia. As maiores reduções observadas foram em hérnia encarcerada, apendicite não complicada e colecistite aguda. De acordo com outro trabalho21, a redução de cirurgias para hérnia inguinal encarcerada se deve ao uso do procedimento de táxis (redução manual da hérnia sob analgesia/sedação), que consiste em um tratamento de primeira linha útil em situações em que a disponibilidade cirúrgica se encontra momentaneamente comprometida, a exemplo da pandemia de COVID-19.

Com base em um estudo de 2020 realizado em um centro de trauma na Turquia20, observou-se uma redução no número de cirurgias de emergência como um todo quando comparado ao mesmo período do ano anterior. Em relação às emergências hepatobiliares, a colecistite aguda apresentou a maior variação, com diminuição de 47,3%. Essa redução no número de admissões pode ser explicada tanto pela menor procura, devido ao medo pelo contágio, quanto pela maior adesão do manejo não cirúrgico, com antibióticos intravenosos e analgésicos, nos casos que possuem indicação.

Já a diminuição referente à apendicite não complicada e à colecistite aguda pode ser explicada pelo maior emprego de tratamento com antibióticos, utilizado durante a pandemia como alternativa à resolução cirúrgica, a qual demanda mais recursos hospitalares e humanos. Embora a cirurgia laparoscópica seja o tratamento padrão-ouro para apendicite não complicada e colecistite aguda, a antibioticoterapia constitui uma opção válida22,23. Outro trabalho24 corrobora esta compreensão, ao concluir que as admissões por apendicite aguda diminuíram 40% durante o período de pandemia devido à possível recuperação de casos leves com tratamento sintomático em casa.

O tratamento não-operatório da apendicite, apesar de aumentar a chance de recorrência da doença em até 39%, não interfere no risco de perfuração; assim, trata-se de uma estratégia segura e eficiente a curto prazo em casos selecionados22 para evitar a sobrecarga dos hospitais em meio à pandemia. Aqueles pacientes que, no entanto, não obtiverem sucesso com o tratamento não-operatório devem ser encaminhados para a cirurgia, bem como os que já têm o quadro de apendicite complicada, com abscesso na fossa ilíaca direita ou com evidência de perfuração, podendo se optar também pela drenagem percutânea, a depender do seu estado clínico.22

Notou-se então um aumento na taxa de cirurgias para apendicite complicada, bem como na taxa de mortalidade em pacientes operados de emergência no período de pandemia, o que pode se justificar pelo atraso na admissão aos hospitais20. Como consequência, ocorre o atraso no tratamento, relatado em mais de 40% das emergências abdominais não traumáticas neste período, segundo estudo multicêntrico8. No entanto, as cirurgias de emergência realizadas por trauma, perfuração e isquemia mesentérica não foram afetadas pela pandemia, o que sugere que os pacientes que realmente precisam de cirurgia de emergência são encaminhados ao hospital20.

A classificação da infecção intra-abdominal como não complicada, quando envolve somente o órgão acometido, ou complicada, quando há também acometimento do peritônio, com peritonite localizada ou difusa, permite que seja realizada uma triagem dos pacientes que chegam aos hospitais, a qual é essencial para a avaliação da gravidade da doença em questão. Em geral, o estado hemodinâmico após manobras de ressuscitação inicial é determinante para estratificar o risco de pacientes com indicação de cirurgia imediata19. Com isso, é possível definir a terapêutica mais adequada para o contexto, pesando a condição clínica do paciente, a disponibilidade de insumos necessários à internação e a exposição da equipe profissional.

Nos casos de colecistite aguda, as restrições relacionadas a COVID-19 podem apontar para o manejo da infecção com antibióticos, analgésicos intravenosos e adiamento da cirurgia como solução mais apropriada para o contexto, apesar da tradicional recomendação de cirurgia precoce. Esta, por outro lado, está associada à internação hospitalar mais curta, vantagem percebida por diversos ensaios randomizados e controlados19.

Quanto à diverticulite aguda não complicada, indica-se tratamento não-operatório com antibióticos intravenosos. No entanto, a depender do quadro, pode ser necessária drenagem percutânea ou cirurgia para os pacientes com peritonite generalizada, sinais de sepse ou choque. Nesses casos, a sigmoidectomia de emergência por laparoscopia deve ser evitada por conta do risco de aerossolização19.

Em relação à obstrução adesiva do intestino delgado, o manejo não-operatório já deve ser sempre a abordagem de escolha para pacientes que não apresentem peritonite, estrangulamento ou isquemia intestinal19; apresenta eficácia de aproximadamente 70-90%26.

Os pacientes que não obtiverem sucesso com o tratamento não-operatório para uma condição cirúrgica ou que apresentem instabilidade hemodinâmica devem ser considerados para cirurgia, sendo a laparoscopia o procedimento de escolha sempre que possível, tomadas as devidas medidas de prevenção à transmissão do vírus, presente no pneumoperitônio27. Dentre as vantagens estão um menor tempo de internação e um menor risco de complicações no pós-operatório. Evitando-se uma internação mais prolongada, a gestão dos recursos hospitalares na pandemia de COVID-19 é favorecida.

Nos casos em que o tratamento falha ou que existe clara indicação de cirurgia, como instabilidade hemodinâmica, os pacientes devem ser encaminhados para a cirurgia. As cirurgias de pacientes com COVID-19 devem ser realizadas da mesma forma, porém com cuidados adicionais para evitar a disseminação do vírus11: deve ser realizada TC antes da operação; realizar manejo não cirúrgico de pacientes infectados estáveis, visando adiar a cirurgia até que diminua o risco de infecção; devem existir enfermarias, elevadores e salas de operação destinadas para infectados; as salas de operação devem ter pressão negativa; a equipe dentro da sala deve ser limitada ao essencial e o fluxo de entrada e saída deve ser evitado; abordagem preferencialmente pela via laparoscópica, que propicia uma barreira adicional entre o paciente e a equipe presente na sala da operação.

 

CONCLUSÃO

Os casos cirúrgicos de emergência, especialmente os traumáticos, apesar de terem sofrido uma redução em número durante a pandemia, apresentaram um aumento da gravidade, possivelmente relacionado a uma maior morosidade na procura por um serviço de saúde. Além disso, a infecção pelo COVID-19, muitas vezes mesmo assintomática, esteve relacionada a uma maior mortalidade, tanto em cirurgias de urgência traumáticas e não traumáticas, e a complicações especialmente fatais, principalmente as pulmonares, trombóticas e renais. Um maior período de espera entre o diagnóstico de COVID-19 e a realização de procedimentos cirúrgicos, bem como o adiamento, sempre que possível, dessas cirurgias no contexto da urgência em pacientes com COVID-19 parecem estar relacionados a uma maior segurança. Há uma carência de estudos relacionados a esse tema, principalmente brasileiros, fazendo-se necessária a existência de estudos mais robustos para que ocorra uma melhor elucidação a cerca dessa questão.

 

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